“Ela merecia viver”


Ela acordava cedo. Fazia café, separava a roupa dos filhos, olhava pela janela e suspirava com o céu nublado — como quem sabe que há tempestades que vêm por dentro. Ela sonhava pequeno, às vezes: um fim de semana em paz, um abraço que não doesse, um silêncio que não amedrontasse. Sonhava grande também — queria viajar, estudar, crescer. Mas entre o desejo e o real, havia sempre um nome, uma ameaça, uma porta trancada.

Ela carregava o mundo nas costas com uma força que ninguém via. Porque ela sorria, e esse sorriso camuflava os gritos que nunca pôde soltar. Porque ela amava, e nesse amor ensinavam que deveria suportar. Porque ela era mulher — e ainda hoje, ser mulher é nascer com um alerta permanente de perigo.

A violência não começou com socos. Começou com palavras afiadas, com controle disfarçado de cuidado, com um silêncio que virava punição. Depois veio o grito. O empurrão. A humilhação. E cada vez que ela pensava em partir, alguém dizia: “mas ele é pai dos seus filhos”, “você que provocou”, “se separar vai ser pior”. Ela passou a acreditar que merecia aquilo. Que era o preço de amar. Que era normal.

Até o dia em que não houve amanhã.

Hoje, ela é lembrança nas fotografias, nome em uma manchete, sussurro de dor nas conversas da família. Hoje, o que ela não viveu ecoa como denúncia. Porque ela merecia ter envelhecido. Ter dançado sem medo. Ter mudado de ideia mil vezes. Ter amado de novo. Ter sentido o sol na pele em paz. Ela merecia ter contado sua história — inteira, livre, viva.

Feminicídio não é tragédia. É crime. É falha coletiva. É silêncio cúmplice. E cada mulher que parte nessa violência é uma ferida que sangra em todos nós.

Escrever sobre isso é resistir. É lembrar que cada vida de mulher importa. Que não basta se comover — é preciso transformar. Na lei, na cultura, na educação dos filhos, nas conversas entre amigos. É preciso proteger antes que seja tarde. Ouvir antes que seja grito. Amparar antes que vire luto.

Que o nome dela, e de tantas outras, nunca seja apenas estatística. Que seja chamado à ação.


*César

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